Manual para continuar transando feliz depois do HIV

Você acabou de descobrir que é soropositivo. Isso é razão para se esconder num canto e nunca mais transar com ninguém? De jeito nenhum! Confira as respostas para as principais dúvidas sobre a vida sexual com HIV e continue transando com alegria e segurança

por Marcio Caparica

Pois bem,  você acabou de receber o resultado do teste para HIV e o resultado veio positivo. Muita conversa com os médicos, muita reflexão sobre os cuidados que vai ter que tomar daqui para frente. Você começou a colocar os antirretrovirais em sua rotina (nada de ficar enrolando para baixar essa carga viral, certo?). A vida voltou aos eixos… Ou quase.

Foi com sexo que se contraiu o HIV, e muitas vezes o sexo passa a ser um monstro para quem acabou de se tornar soropositivo. O que pode fazer, o que não pode fazer, o que vão pensar, as coisas podem ficar ainda piores? Transar, que é pra ser algo bacana e simples, vira um bicho de sete cabeças. Respire fundo e se acalme. O LADO BI escalou Ricardo Vasconcelos, médico infectologista do Hospital das Clínicas de São Paulo e do programa PReP Brasil, e Rafael Kazeoka, advogado criminalista em São Paulo, para esclarecer as principais dúvidas sobre o que muda ou não em sua vida sexual.

Eu devo contar que sou soropositivo para todos os meus parceiros daqui pra frente?

Você não tem obrigação de sair contando para todos seus parceiros sexuais que tem HIV – você tem que tomar as medidas necessárias para evitar transmiti-lo para outros. “Vivemos num mundo que ainda tem muita desinformação sobre HIV/Aids, o que acaba gerando enorme tabu sobre esse assunto”, alerta o dr. Ricardo Vasconcelos. “Nem todos vão receber essa informação da maneira de uma maneira sensata e equilibrada. Considero que a soropositividade para o HIV é uma intimidade do soropositivo. E intimidades devem ser contadas apenas para as pessoas que merecem a confiança. Entretanto, mais do que nunca, um soropositivo deve colocar em prática todas as estratégias disponíveis para que seu vírus não seja transmitido para mais ninguém. E isso inclui principalmente usar a camisinha de maneira consistente e tomar seus medicamentos antirretrovirais de maneira correta, com o objetivo de manter sempre sua carga viral indetectável. Fazendo isso, o soropositivo não estará colocando ninguém em risco de aquisição do seu vírus. Nem mesmo aqueles que desconhecem o seu diagnóstico.”

Agora que eu sou soropositivo, é melhor eu transar apenas com outros soropositivos?

Não necessariamente. “Da mesma maneira que antes do diagnóstico ter sido feito, um soropositivo para HIV pode transar com quem ele quiser”, lembra o dr. Ricardo Vasconcelos. “É muito comum que novos soropositivos procurem por parceiros também portadores do HIV: para não terem que passar pelo processo de revelação do diagnóstico, pelo medo da rejeição por causa do virus, e por conta do medo da transmissão do seu vírus para outras pessoas. Entretanto, quando utilizadas as estratégias atuais de prevenção da transmissão do HIV, como a camisinha, as profilaxias antirretrovirais e o tratamento eficaz da doença do soropositivo, que são 100% eficazes, não há nada a temer.”

“O mais importante não é transar só com soropositivos, mas com aqueles por quem se tem tesão e vontade, e que sejam aderentes às medidas de prevenção”, ele continua. Agora, quanto ao medo de rejeição… O pensamento aqui tem que ser prático. Você tem HIV. Não há cura prevista no futuro próximo – ou seja, você vai viver com o vírus mesmo. Qualquer pessoa que se recuse a transar com você, mesmo usando preservativo, apenas porque você é soropositivo é um idiota e não merece a sua companhia. A reação das pessoas ao descobrirem seu diagnóstico já serve como uma peneira das pessoas que vale a pena você ter por perto.

Eu posso fazer sexo oral sem preservativo? E receber sexo oral, é seguro?

O sexo oral é uma das grandes interrogações do mundo gay – todo mundo já ouviu dizer que deveria fazer sexo oral com camisinha, mas ninguém faz. “Se existir de fato algum risco de transmissão do HIV pelo sexo oral, ele é bastante pequeno”, pondera o dr. Ricardo Vasconcelos,  “e pode ser zerado se o soropositivo estiver em tratamento com controle eficaz da multiplicação viral. Mas algumas coisas devem ser lembradas: quanto ao HIV, só existe risco de transmissão quando o soropositivo está recebendo o sexo oral (sendo chupado), e nunca quando está fazendo o sexo oral (chupando) – e um risco muito, muito baixo.” Ele também aproveita para esclarecer as neuras mais recorrentes sobre atividades que poderiam aumentar o risco de se contrair HIV no sexo oral: nem usar aparelho fixo, nem escovar os dentes, nem passar fio dental aumentam as chances de se transmitir HIV. “Independente de situações como essas, a boca já tem um ampla área de mucosa exposta para o HIV ou qualquer outro agente causador de outras DSTs. Acredito que, quando o assunto é sexo oral, é sempre melhor se preocupar mais com outras DSTs do que com o HIV. Diferentemente do HIV, doenças como sífilis, gonorréia, clamídia, herpes e HPV apresentam risco bem maior de transmissão nesse tipo de atividade sexual.”

Já peguei HIV. Tenho que me preocupar com outras DSTs?

Sim, sim, sim, sim. Vamos frisar mais um pouco: sim. “Apesar de muita gente achar que se infectar com o HIV é ‘a pior coisa que poderia acontecer’, não é”, aponta o dr. Ricardo Vasconcelos. “Uma pessoa soropositiva para o HIV continua vulnerável a todas as outras DSTs existentes.”

É verdade que eu posso pegar um outro tipo de HIV?

É a mais pura verdade. O dr. Ricardo Vasconcelos explica: “Os vírus HIV existente no mundo não são todos iguais, e entre pessoas diferentes é possível encontrar vírus com diferentes perfis de sensibilidade e resistência aos antirretrovirais disponíveis. Em outras palavras, uma pessoa pode ter um vírus que pode ser controlado com qualquer medicamento, enquanto outra pode ter um vírus que já é resistente a algumas drogas, sendo portanto mais difícil de ser controlado. Uma pessoa que tem o vírus ‘bonzinho’ pode complicar o próprio tratamento e saúde se ela se infectar com um vírus resistente, pois vai ter que trocar o esquema antirretroviral que usa. Assim, uma pessoa soropositiva para HIV deve continuar atenta às medidas de prevenção tanto de outras DSTs quando de outros tipos de HIVs”. Deixando bem claro: não é para descartar o uso do preservativo só porque seu parceiro disse que também é soropositivo.

Se minha carga viral se tornar indetectável, eu posso transar sem preservativo?

Depois que se toma antirretrovirais por algum tempo, a quantidade de cópias do vírus HIV no sangue torna-se tão baixa que não é mais detectada em exames – o que não significa que o paciente esteja curado. No entanto, enquanto essa situação se mantiver, ele também não transmite mais o vírus para outras pessoas. Isso não significa dizer adeus à camisinha. “Diversos estudos, com o acompanhamento de um número grande de pacientes e com tempo considerável de seguimento, têm mostrado recentemente que portadores de HIV que estão em uso correto de seus antirretrovirais e, portanto, sem vírus detectáveis no sangue, não apresentam risco de transmissão do HIV por via sexual, mesmo sem o uso do preservativo”, confirma o dr. Ricardo Vasconcelos. “Entretanto, embora a notícia seja bastante importante no contexto da prevenção de novas infecções, ela não significa que, uma vez que o soropositivo esteja em tratamento, ele pode ter suas relações sexuais sem camisinha. Afinal, como já dito acima, além de outras DSTs, existem também outros tipos de HIV que ainda precisam ser evitados.”

Eu posso ser responsabilizado legalmente se transmitir o vírus para outra pessoa?

Essa é uma questão complicada, pois o Brasil não dispõe de leis que tratem especificamente da transmissão do HIV. “Na Áustria, por exemplo, há uma legislação especial que cuida do tema”, explica o advogado criminalista Rafael Kazeoka. “No Brasil, até os dias de hoje esse comportamento rende discussão no meio jurídico. O ponto incontroverso é: a transmissão intencional do HIV configura crime, sim. Resta saber qual. Os juízes e doutrinadores têm oscilado entre três delitos: tentativa de homicídio, perigo de contágio de moléstia grave ou lesão corporal grave.”

Existem alguns casos já julgados que servem de precedentes nessas questões legais sobre transmissão do HIV, aponta Kazeoka. “Em 2010, o Supremo Tribunal Federal, a nossa mais alta instância judicial, julgou o Habeas Corpus 98712 e firmou seu entendimento: a transmissão de HIV não pode ser considerada tentativa de homicídio, mas sim o crime de perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131 do Código Penal), que tem pena mais branda. Já o Superior Tribunal de Justiça, em 2012, firmou entendimento no sentido de que o crime praticado é o de lesão corporal grave (art. 129, §2º, II, do Código Penal), que tem penas bem mais altas do que o de perigo de contágio (Habeas Corpus 160.982/DF). A conclusão: a transmissão não-intencional de HIV não é crime. A transmissão intencional configura crime, e a tendência atual é de ser considerada lesão corporal grave, que tem pena de reclusão de dois a oito anos.”

Provar que a transmissão não foi intencional pode ser todo um problema por si só. Então é melhor garantir sua paz de espírito: use sempre preservativo, tome antirretrovirais e esteja certo de que não transmitiu HIV para ninguém.

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