MC Linn da Quebrada: “o ódio disfarçado de opinião é tão culpado quanto quem mata”

Com seu clipe “Enviadecer”, a funkeira derruba o macho alfa do trono: “eu gosto mesmo é das bichas, das que são afeminadas”. ENTREVISTA EXCLUSIVA

por Marcio Caparica

O mundo gay funciona dentro de um sistema de castas que espelha o da sociedade em geral: no alto da cadeia alimentar estão os “másculos”, “os machos discretos”, e daí a escala vai descendo até chegar nas “bichas escandalosas”, “poc-poc”, afeminadas. Sem perceberem, gays organizam-se nessa hierarquia e raramente questionam por que acham que é um elogio ouvir a frase “nossa, mas você nem parece que é gay”.

É uma escala de valores que, contraditoriamente, aprisiona a maneira de agir e se relacionar do mundo LGBT – o universo que deveria se livrar desse tipo de amarra. Destruir esses paradigmas sexuais e de gênero é a luta da funkeira MC Linn da Quebrada. Ela se define “Bicha, trans, preta e periférica. Nem ator, nem atriz, atroz. Bailarinx, performer e terrorista de gênero.” Ativista, colaborou com a formação da ONG ATRAVESSA (Associação de Travestis de Santo André) e atua como performer no Coletive Friccional. No clipe de seu primeiro single, “Enviadecer”, que estreou hoje, Linn destroi a hierarquia aceita como “normal”, em que as afeminadas cobiçam os machões: “eu não tô interessada no seu grande pau ereto / eu gosto mesmo é das bichas, das que são afeminadas / das que mostram muita pele, rebola sai maquiada / se você quiser sair comigo, boy, vai ter que enviadecer”.

Produzida pela rapper lésbica Luana Hansen, o single usa o funk carioca como instrumento em prol da liberdade de gênero. ““Eu sempre gostei muito de funk e de dançar. Mas me incomodava muito no gênero é que a maior parte das músicas são feitas única e exclusivamente para o macho e seu próprio prazer”, conta Linn. “Funk é poesia e movimento. Por isso, eu me senti impulsionada a ocupar também a música e a colocar as minhas ideias em letras de funk e mandar um papo reto sem amarras”. Confira abaixo o clipe (maravilhoso) de “Enviadecer”, e a entrevista (ainda mais maravilhosa) que o LADO BI realizou com Linn por e-mail.

LADO BI O que você quer dizer exatamente  com “enviadecer”? MC LINN Enviadecer pra mim, como eu digo na música, não tem a ver com gostar de rola ou não. Não tem a ver com ser gay. Pra mim é uma atitude. Um posicionamento. Tem a ver com não ser macho, com poder dar pinta, existir da forma como eu escolher. Tem a ver com ser afeminada, e ter orgulho disso. Em celebrar o feminino independente de em que corpo ele esteja localizado.

Lésbicas e héteros são capazes de enviadecer também? O que ganham com isso?

Como eu disse acima, enviadecer é um posicionamento em que eu privilegio o meu corpo, os meus afetos, a minha vivência, e não um sistema heteronormativo compulsório que possui um roteiro pré-estabelecido e que vai decidir por mim como eu devo viver, que roupas devo usar, com quem, quando, e como devo transar e/ou me apaixonar, como devo amar, como devo me comportar, gestos, empregos, estética, que aparência devo ter pra ser amada e ter uma vida digna; e caso eu não aceite esse contrato, que nem é posto como possibilidade, eu sou punida por isso. Enviadecer é, pra mim, assumir o controle do próprio corpo, da própria vida. É também duvidar de suas próprias certezas. É poder errar; é erro enquanto acerto, como possibilidade. É poder inventar sua própria história. É ser ao mesmo tempo criação e criadora. E isso não depende do que eu tenho no meio das minhas pernas, se sou hétero ou não, até porque quando se assume isso, você ganha autoria sobre si mesma. Aumentam as possibilidades, diminuem as certezas e os limites se tornam mais flexíveis.

No funk, a bicha afeminada é mais respeitada do que o gay discreto?

No funk, assim como em todos os outros espaços, isso tem de ser construído. Em quase todos os lugares a bicha não é levada a sério, muito menos respeitada. Não é nem permitida. Estamos no meio de um processo. Onde, como diz uma amiga, temos que ter paciência e pressão. Invadir, ocupar, contaminar os espaços com a nossa existência incômoda e, então, quebrar barreiras, romper tabus e reinventar ideias, comportamentos e relações.

MC Linn

Você sente que seu trabalho está mudando a maneira como as pessoas que gostam de funk veem as trans e as bichas?

Acho que minha atuação com funk ainda está numa fase inicial e não teve tanto alcance, mas as pessoas que tem tido contato com minha música já demonstram se sentirem contempladas. E isso é o que tem importado pra mim. Óbvio que quero alcançar mais pessoas porque acredito que a música também tem que ser invadida. Temos que ter acesso a esse espaço também, com novos e diversos enunciados. E isso já vem sendo feito há muito tempo e por muita gente, eu não sou e nem quero, ou tenho a pretensão de ser a pioneira, representante disso. A questão é justamente sermos vistas, ouvidas. Todas nós. E só assim a maneira como somos vistas será transformada.

Duas bichas afeminadas se pegando dá certo?

Não há formula certa, muito menos manuais do que funciona ou não no sexo. Acontece que somos educadas e pedagogizadas por uma indústria pornô que nos diz que o sexo é sempre em função do Macho. E isso torna difícil pensarmos em nos relacionar sexo e afetivamente entre nós. Temos que reorganizar também esse mercado sexual e afetivo. Eu posso falar por mim: digo que minhas relações eram na maior parte das vezes frustrantes e sem graça. Um sexo repetido e igual, independente de com quem fosse. Sem contar que os machos me faziam sentir apenas como um depósito de porra, um buraco pro seu prazer. E lógico que isso não muda de um dia pro outro. Ainda mais com todas as tecnologias e estruturas que nos fazem admirar e dobrar nossos joelhos diante da grande pica dura do macho alfa. Desejo também é construído. E justamente por isso pode ser desconstruído e reconstruído. Sexo é linguagem. E você pode ter acesso a uma língua, ou pode conhecer mais e mais, e ir mudando seu vocabulário, inventando gírias, fazendo pajubá. Tenho me permitido relacionar com as minhas manas, pois eu sei o quanto é difícil ser preterida por ser a bixa preta afeminada. O quanto cansa ser a bixa close, bafo, que só serve pra tirar foto na balada, mas não serve pra dormir em casa, e se relacionar de fato. É sobre isso que eu to falando nas minhas músicas, sobre tirar os olhos dos boys e olhar pra nós, pras bee, pras manas, pras monas e perceber o quanto somos lindas e fodas e gostosas. E isso só tem me feito bem.

Você já foi alvo de agressão ou violência por ser pintosa? Como você se defende disso?

Sou alvo de agressão e violência constante. De todos os lados. E isso não é exclusividade minha. Muitas como eu são alvo desse tipo de violência. Uma violência que vem de dentro de casa, da televisão, da igreja, na rua, na escola, as vezes até entre nossxs amigxs. Às vezes vem camuflada e as vezes sem vergonha nenhuma de mostrar as caras e se mostrar presente. Ela é inclusive de uma certa forma permitida em lei e fomentada pelos que estão no poder. E o ódio disfarçado de opinião é tão culpado quanto quem mata. É o que permite que alguns corpos sejam mortos, que não tenham importância, que não mereçam ser chorados. Como se fôssemos vidas que não merecessem ser vividas. E uma das formas que tenho encontrado de nos defender é através da música, da minha presença nos espaços e principalmente umas com as outras. Desde andar juntas, não permitindo que essa violência passe despercebida, denunciando nas redes, nos apoiando psicologicamente, afetivamente, sexualmente, financeiramente. Estabelecendo redes e vínculos de apoio no que for preciso, dentro das nossas condições e possibilidades.

Você já conseguiu “converter” um discretão?

Acho que nunca converti um “discretão”. Minha intenção nem é essa. Primeiramente, meu trampo e minha vivência visam fortalecer aquelas que já saíram do armário e já tão por aí dando a cara a tapa. Que dão pinta, pintam a própria existência e mancham essa sociedade machista falocêntrica. É celebrar a nossa existência. Nos reconhecer enquanto corpos possíveis e potentes, e nos fazer ser vistas. É justamente destruir essa hierarquia sexo-social que enaltece o macho discreto e rejeita, e desvaloriza, o feminino.Seja numa bixa, mulher cis ou trans, travesti, etc. E a meu ver, a melhor maneira de fazer isso é desviando nossa atenção do macho alfa, e voltando nossos olhos pra nós mesmas. Os machos nem valem a pena. E ser macho não é necessariamente ser homem. São posições e atitudes muito diferentes uma da outra. Lógico que fugir dessa norma não está livre de risco. Justamente por isso é importante com a nossa existência provocarmos fissuras sobre esse sistema.

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17 comentários

Pedro Franco

Sou gay. Não másculo. Não afeminado. Essa causa tem meu apoio pois qualquer tipo de preconceito/prejulgamento não é bom, não é saudável e deve ser abolido. Mc Linn não quer impor. Quer apenas ser quem ela é sem ser julgada. Quer dar pinta sem ser taxada. Quer dar fim a repetitiva frase que os héteros gostam de usar: ‘tudo bem ser gay, mas não precisa dar pinta’.

Cidao Manamour

Tem efeminada tendo preconceito com ás afeminadas.. por que ninguém fala sobre isso? sofro preconceitos por outras bichas efeminadass..
muitas ficam desquallificando e se achando melhores q as outras, então, vamos parar de hipocrísia e começar a desconstruir preconceitos.

marcel

Duas bichas efeminadas se pegando da certo? Que pergunta é essa? acho que a galera que fez essa entrevista não ta entendendo nada do movimento de desconstrução. Melhorem, precisamos de midias LGBT a nossa altura.

Marcio Caparica

Oi Marcel. Nós entendemos muito do movimento de desconstrução. Já que você não entendeu, vou explicar: às vezes um jornalista faz uma pergunta “tonta” exatamente para que o absurdo dessa pergunta seja desconstruído pela entrevistada. Muita gente acha que duas afeminadas pegando não é possível. O fato de eu fazer essa pergunta não significa que EU não acho que dá certo; apenas significa que estou dando à convidada (que é uma voz muito mais capacitada para fazer esses argumentos do que eu) a oportunidade de educar o público.

Mig

Infelizmente, gays não são unidos, até mesmo os afeminados tem preconceitos com outros afeminados. Existe muita rivalidade de competir entre si para ser “bichas mais destruidoras” e isso só vai levar ódio entre os seus semelhantes. Fico triste que não somos unidos.

André Bissexual

Sou Bissexual, só me sinto atraído por homens masculinos e mulheres femininas. Não curtir homens afeminados ou mulheres masculinas não significa ser preconceituoso. Não tem nada de errado ter gosto e preferências por aquilo que você realmente gosta. Cada um viva com os seus gosto.

Alysson

Não consigo entender isso, eu como gay não sinto atração por feminilidade, e a maioria também não, agora os afeminados querem respeito atacando os que são diferentes deles? Não entendem que ser gay não é sinônimo de ser afeminado? E que tem gays que são naturalmente masculinos, sem essa de heteronormatividade, são assim por que são e ponto, afinal gay também é homem, e pode agir assim sem problema nenhum.

Alysson

Na verdade vejo isso dos dois lados e não deveria ser assim! O que mais me incomoda em nós gays é a rivalidade extrema que existe, o excesso de drama também, e depois de tanto ver e sentir isso, eu não quero mais esse tipo de coisa na minha vida! Os gays não tem irmandade, não se apoiam, existem tantos artistas gays que estão sim dando a cara a tapa para conquistar seu espaço, mas os gays só criticam, falam mal e não dão o menor suporte, preferem endeusar as divas que são mulheres héteros do que apoiar gays, então isso me deixa meio sem esperança, meu irmão é hétero e me dou muito bem com ele, e com toda minha família, sou muito assumido e saí do armário para nunca mais voltar e converso abertamente sobre tudo e vendo meu irmão com seus amigos héteros, eles tem companheirismo, irmandade, é muito legal e lamento por não ter isso na minha vida, deveria existir uma campanha de que gays não são rivais, inimigos, um melhor que o outro, todos deveriam se apoiar, se amar, serem amigos assim seria mais fácil lutar por direitos, se fôssemos como um muro muito unido seria muito difícil nos derrubar, não me sinto representado por uma comunidade tão separatista.

Taquipariu

miga, te solta, dá um pinta, uma frescada, uma grito na rua com as miga que a senhora chega lá com cumplicidade gay tão desejada. E não, isso não significa ser afeminada. É só ser leve, feliz mesmo.

fabio oliveira

Acho que essa coisa do “Não curto Afeminados” está criando uma segregação muito ruim… amor acontece.. Agora, nessa atual conjuntura… acho que os Másculos deveriam por mais a cara no sol.. dar a mão as lacrativas & Fechadoras e caminharmos em diração a conquista de nossos direitos..

Giuliano N.

O nome disso é lacre, e quem se opõe apenas viva e deixe viver.

André

Nossa, esse ser não me representa! Quando as afeminadas vão colocar na cabeça que tudo bem ser gay masculino? Que eles querem ser aceitos atacando a liberdade dos outros? Isso é um pouco contraditório em um movimento que prega tolerância, mas bem seletiva claro! E tentar usar funk como conscientização, por favor, totalmente sem crédito.

Verônica

Acho que você entendeu tudo errado. Que pena, seu comentário foi totalmente equivocado. Releia!

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