Lampião da Esquina, julho de 1979, com Lula na capa

“Lula acreditava que não havia homossexuais no movimento operário”, lembram fundadores do “Lampião da Esquina”

Documentário sobre a primeira publicação gay do Brasil mostra o início do movimento e da visibilidade LGBT no país

por Marcio Caparica

No final dos anos 1970, com o declínio da ditadura, chegava às bancas brasileiras o primeiro tabloide LGBT do país: o Lampião da Esquina. A trajetória dessa publicação guei (como escreviam em suas páginas) é o tema do documentário Lampião da Esquina, dirigido por Lívia Perez, que entrou em circuito comercial na semana passada. Em entrevista exclusiva ao LADO BI, Perez, João Silvério Trevisan, um de seus fundadores, e Glauco Mattoso, outro colaborador frequente do jornal, contaram um pouco da história do Lampião e da produção do documentário.

Fundado por Aguinaldo Silva e outros jornalistas abertamente homossexuais em 1978, o jornal foi o primeiro a dar visibilidade à comunidade LGBT brasileira, que na época se escondia em guetos. A publicação acabou por abrir espaço para uma cultura que não encontrava apoio entre as ideologias de quarenta anos atrás. “Nós estávamos experimentando algo que ainda não existia”, explica Trevisan. “Nós não cabíamos na militância que existia naquele tempo. Éramos um grupo de homossexuais que abordava vários assuntos, não apenas os imediatamente pertinentes à comunidade homossexual: falávamos sobre problemas dos negros, das feministas, questões ambientais. Queríamos estabelecer o diálogo entre as chamadas ‘lutas menores’, porque a ‘luta maior’, para o pensamento de então, seria a do proletariado. Só havia espaço para nós como política menor, lá no cantinho, como uma política adjetivada: política homossexual, política feminista, política antirracial, política ambiental.”

Lampião da Esquina foi inspirado por um jornal gay norte-americano publicado na época, o Gay Sunshine. Mas os escritores afirmam que o principal impulso para a criação do Lampa era a maneira como mesmo aquelas publicações que nos anos 1970 eram consideradas mais progressistas ainda carregavam muito preconceito contra a homossexualidade. Trevisan dá um exemplo: “A gente tinha consciência muito clara dos preconceitos ferozes do Pasquim, e caíamos de pau em cima”.

Lampião da Esquina inovou ao publicar as gírias que as bichas usavam na época, ao mesmo tempo que fazia um trabalho jornalístico sério, abordando vários temas que ainda hoje são espinhosos, como prostituição, aborto e violência homofóbica. “A esquerda tradicional era muito rançosa, muito sisuda”, ironiza Mattoso. “Esse toque era o que nos distinguia do resto da chamada resistência cultural: nós nunca perdíamos o bom humor, mesmo quando tratávamos de assuntos como violência e preconceito.”

E mesmo na esquerda a homossexualidade ainda era tabu: Trevisan recorda-se de quando entrevistou Lula para a edição de julho de 1979 do Lampião da Esquina. Já conhecido nacionalmente como líder operário, o futuro presidente da República afirmou, durante sua conversa, que não existiam homossexuais dentro da classe operária. “Foi uma delícia, porque as bichas do ABC mandaram cópia de RG para mostrar que eram viados e trabalhavam em tal fábrica”, ri Trevisan.

Lampião da Esquina, julho de 1979, com Lula na capa

Capa do Lampião da Esquina de julho de 1979, com Lula na primeira página.

A discriminação contra travestis é outro tema que hoje ainda causa muito desconforto, mas que já era discutido nas páginas do Lampião da Esquina. “A questão de travestis nasceu no Lampião de maneira muito natural”, conta Trevisan. “O Aguinaldo Silva  morava na Velha Lapa e convivia o tempo todo com travestis, inclusive com travestis barra-pesada – Madame Satã saiu de lá, para você ter ideia. Para o Aguinaldo, isso era a coisa mais natural do mundo. Nós sabíamos o que estava acontecendo com as travestis na rua, tanto que há um número do Lampião que denuncia a perseguição às travestis em São Paulo.”

Produzir um documentário sobre uma publicação que ainda hoje seria muito polêmica não foi fácil, lamenta Perez. “Quando se apresenta um projeto sobre um jornal com uma pauta tão espinhuda quanto a do Lampião, ou você dá aquela maquiada no projeto, ou você não consegue ter a aderência das empresas. Os patrocinadores não querem vincular sua marca a todas aquelas questões que o Lampião já abordava na época e que ainda não foram resolvidas”, explica. O documentário foi produzido ao longo de três anos, com o auxílio de editais e uma parceria com o Canal Brasil, que possibilitou sua finalização.

Tanto esforço, no entanto, valeu a pena. “As pessoas se surpreendem ao descobrir que as conquistas de hoje não vêm do nada”, comemora Perez. “O público mostra uma surpresa muito positiva ao conhecer esses personagens fundamentais, e de toda a luta que eles praticamente fundaram”.

Glauco Mattoso completa: “As gerações atuais estão acostumadas a ver muita manifestação de rua, elas acham que a Parada do Orgulho LGBT é a coisa mais natural do mundo. Não fazem ideia o que seria uma tentativa de se fazer uma passeata dessas na época da ditadura. A gente estava se expondo da única maneira possível: por escrito ou ao vivo, em debates e palestras. Não era concebível essa ousadia de sair às ruas. Mas isso, hoje, só acontece porque nós demos esse primeiro passo.”

Lampião da Esquina, o documentário, foi selecionado para a mostra É Tudo Verdade de 2016, e segue agora no circuito de documentários; os interessados em assisti-lo podem conferir quando serão as próximas exibições na página de sua produtora, a Doctela. Todas as edições do jornal (que deixou de ser publicado em 1981) foram digitalizadas e podem ser lidas gratuitamente na página do Grupo Dignidade.

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